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Coluna do Samuel

CRÔNICAS DO BAIRRO VERA-CRUZ (PARTE 1)


(Imagem: JornalGGN / Reprodução)

Em uma cidade distante um bairro chama atenção. Não por sua colossal estrutura, ou por suas belas árvores, e nem pelos estonteantes pássaros de diferentes cores e cantos que o ornam, mas pelas intrigas e conflitos entre seus moradores. Algumas figuras merecem destaque.


O mais velho deles é o senhor Teófilo."Homem dos negócios", possui a casa mais bonita do bairro. Casarão de muitos metros de extensão, sem contar as terras férteis que desaparecem no horizonte, todas anexadas por ele mesmo e com registros falsificados, a famosa "grilagem de terras".


Outro morador é o muito bem aposentado ex-tenente Aguiar.Foi militar na época da ditadura e não tem medo de dizer que concordava com tudo o que ocorria, afinal "terrorista é tudo bandido mesmo, tem que apanhar". Até mesmo seu neto Carlinhos, que atualmente participa de um partido de esquerda. E identificar o milico é fácil, está sempre pra lá e pra cá dizendo que "na ditadura dava certo", como naquela época "não existia corrupção" e afins. Talvez seja pela avançada idade que o mesmo se esquece de ter recebido 1 milhão de dólares para apoiar o movimento golpista. É, "idade"...


Em posição elevada no bairro também está a Família Laguinho, comandada pelo Sr.Roberto Laguinho, dono do jornal de maior circulação do bairro: Jornal O Mundo. Longe da honestidade, o periódico manipula informações e eleições para a Presidência do Conselho de Bairro em prol de seus próprios interesses. Fernando que o diga. Eleito com larga vantagem para presidir o Conselho vive do conluio com os Laguinho. Depois de nomeado, ele e sua família se mudaram para a casa central do bairro, residência vistosa com um belo jardim e construção moderna, se faz notar de longe. E as benesses não param por aí, além do reforço midiático Roberto Laguinho tratou de arrumar passagens de primeira classe para a família toda. O outono em Paris estava maravilhoso.


Quando voltou o recém eleito presidente recebeu uma festa elegantíssima, um banquete farto e uma mesa repleta de vinhos europeus caríssimos para degustação, sua bebida predileta.Tudo pago por Rodolfo, industrial respeitado por todos e que planeja para este ano uma gigantesca produção. No entanto, para isso acontecer há uma condição: O Fundo da Associação dos Moradores terá que reservar 80% de sua receita anual para o aperfeiçoamento do maquinário. Mas cá entre nós, depois de uma festança daquelas, quem não iria assinar o acordo, não é mesmo?


Entretanto, o resultado não foi o esperado. Depois de um ano a produção foi a menor já registrada, além dos empregados demitidos. Um deles, aliás, foi demitido por descobrir o real destino do dinheiro da Associação. Não houve investimento coisa alguma, tudo foi embolsado por Rodolfo e seus sócios. E o caso nem mesmo comentado na mídia foi. Sr. Roberto, por exemplo, proibiu estritamente qualquer um de seus jornalistas de cobrir o caso. Alianças...


Dona Sônia, mulher de um dos empregados demitidos, não deixou barato. Tratou de convencer os trabalhadores demitidos e seus companheiros ainda empregados a participar da ocupação da fábrica e de uma greve que duraria até que os empregos fossem re-estabelecidos. Luiz, no entanto, quer mais. Liderança entre os homens da fábrica, deseja a restituição total do dinheiro roubado do Fundo da Associação. "Nada mais justo", pensam os operários.


A marcha se inicia no dia seguinte. Uma multidão que vinha da direção nordeste enchia as ruas. A população mais humilde se engajou na luta dos trabalhadores em massa. Carlinhos também estava lá junto com os seus 5 amigos do movimento estudantil, claro que a contragosto do avô. Seu Aguiar, aliás, da janela de casa via a marcha perplexo. Não pela quantidade de pessoas e nem pelo motivo, mas pela "incompetência dessa polícia que ainda não tirou esses vagabundos da rua". Só se esqueceu que esses são os mesmos "vagabundos" que pagam sua pomposa aposentadoria.


A ocupação então se concretiza.O portão principal é aberto na base dos pontapés e a multidão se une na gritaria. Palavras de ordem contra Rodolfo e seus sócios que nem na cidade estavam. O industrial não fazia ideia do "Dia D" programado pelos operários,e assim que informado por telefone pelo segurança escondido na guarita, volta às pressas para Vera-Cruz. A ligação para o Delegado Francisco foi imediata.Não entrava na cabeça de Rodolfo "a inanição da polícia frente aos criminosos e salteadores"."É, na verdade é justamente por causa de criminosos e salteadores que essa ocupação está acontecendo, Sr. Rodolfo", pensou o submisso delegado.A resposta, infelizmente, foi outra. Todas as viaturas foram acionadas para a fábrica. Os manifestantes foram cercados e a polícia utilizou, logicamente, o tratamento padrão: "tiro, porrada e bomba". Nem mesmo as crianças foram poupadas do massacre.Enquanto isso, Teófilo observava de longe a debandada da população com um sorriso de canto de boca, "que passem longe da minha terra".


E é válido lembrar que dessa vez o tratamento da mídia foi diferente.Ao contrário de antes, o Sr. Roberto Laguinho fez questão de cobrir a "Invasão dos vândalos que comprometeu segurança do Bairro Vera-Cruz", como enunciava o título.Curioso, não é? Porém, mais curioso ainda é o apelo da população por um dos empregados: Luiz. O líder da ocupação, no dia seguinte, fez um mega pronunciamento na Praça Central. Os operários e simpatizantes do movimento ficavam eufóricos a cada frase de comando e protesto. Era visível que aquele homem seria indispensável para a organização dos trabalhadores de Vera-Cruz. Foi o que Carlinhos e seus "camaradas" também raciocinaram. Assim sendo, a amizade do garoto com o operário foi instantânea, tanto é que se comprometeu a ajudá-lo em sua nova empreitada: vencer a próxima eleição para a Presidência do Conselho que ocorrerá na próxima semana.


Seria o primeiro homem da periferia, saído do meio pobre de Vera-Cruz, a concorrer a eleição com forte chance de ganhar. Notícia nada boa para Fernando, que já considerava certo "passar a faixa" para seu sucessor, Cerrinha. Sujeito nada honesto que já havia prometido a Rodolfo encobrir o caso do roubo do Fundo da Associação. E é claro que a máxima "não existe almoço grátis" cabe aqui. Em troca, Rodolfo realizaria o sonho de Cerrinha e sua filha: A maior sorveteria da cidade. Ótima pra "fins financeiros". Parece sonho bobo, mas não é.


E o dia da eleição do Conselho finalmente chega. Porém, ao contrário do que se pensa, Luiz não possui "aprovação 100%". Mesmo sabendo das falcatruas de Fernando, uma parte da população se nega a votar e confiar num "operário que nem alfabetizado deve ser". Dona Anna, famosa por dar pitacos políticos por onde vai, diz que votará em Cerrinha, não importa se ele é uma tentativa de "poste político" por parte de Fernando. E também houve quem destilasse maior ódio por Luiz: "Não sabe de nada, não entende de nada! Tem mais é que ficar apertando parafuso na fábrica!". Contudo, nada disso adiantou.


A vitória pra cima de Cerrinha foi avassaladora. Mais de 61% dos votos elegeram o "Homem que veio do povo", como dizia seu slogan. A população foi às ruas comemorar, afinal por muitos anos o Conselho foi presidido pela Elite e para a Elite. Luiz estava em êxtase. Festejou com Carlinhos e seus camaradas do movimento. Porém, suceder Fernando não seria moleza: Entrar em conchavo com os empresários? E as pessoas que o odeiam por ter saído de baixo? Valeria a pena desagradar seus eleitores para se manter no poder? Muitas outras dúvidas nascem. Uma coisa, no entanto, é certa: O agora ex-operário terá que disponibilizar de muita lábia e prudência, caso contrário seu governo irá por água a baixo.


Continua...

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