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Coluna do Samuel

O Socialismo é realmente a realização da Democracia?

A fala do vídeo abaixo faz parte da palestra "Capitalismo, Desenvolvimentismo e Barbárie", proferida durante Oficina Regional Centro-Oeste da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), em 2012.

Os debates atuais acerca da "democracia", acalorados pelo impeachment (leia-se golpe) da presidenta Dilma Rousseff, trouxeram à tona importantes questionamentos para a população como um todo e, por conseguinte, a alguns círculos militantes de esquerda que parecem estar perdidos numa defesa desmedida da democracia burguesa. Vale ressaltar algumas dessas inquietações: "Temos nossa democracia ameaçada por setores conservadores?","Como reagir ao ataque à democracia realizado no domingo, 17 de abril?".E talvez as mais importantes e norteadoras deste texto: "Qual democracia construir? E como construí-la?".

Antes de respondê-las retomarei, ainda que superficialmente, a definição que funda a ideia de "democracia". Se formos à raiz deste conceito temos o poder, "kratós", do "demos", que não quer dizer genericamente "povo", ou simplesmente o conjunto de pessoas (que em grego é laós), mas o "povão". Isso, aliás, explica a crítica que filósofos antigos, todos apoiadores de tiranos e oligarcas, faziam ao sistema inaugurado por Clístenes em Atenas. Aristóteles que defendia o governo de uma oligarquia de sábios, por exemplo, considerava um absurdo que uma coisa tão séria como a gestão da cidade (ou seja, do Estado) fosse confiada para qualquer cidadão (até mesmo indigentes) sem formação, enquanto que, para qualquer outra atividade, se exige conhecimento técnico específico, como o do ceramista, que fazia potes de barro.

Mas mesmo assim, a democracia ateniense, que era imensamente mais avançada que a nossa em alguns aspectos (todo cidadão podia participar da assembleia que votava as leis, os 500 governantes da cidade - 50 por mês governavam em rodízio de um ano[1] - escolhidos por sorteio, comandantes do exército escolhidos por voto) era limitada, pois não incluía as mulheres, nem os que não fossem filhos de pai e mãe ateniense e nem os escravos. Assim, a democracia era exercida por menos de 20% dos habitantes de Atenas.

Tendo isso em vista, a democracia, no seu sentido mais correto, implica que NÃO haja diferenças de poder e riqueza, que a informação flua sem empecilhos e que as pessoas tenham um mesmo nível de educação. E isso, caros leitores, não é prioridade do capitalismo.

E nunca nem foi a intenção dos burgueses efetivar a democracia. Para exemplificar: Na Revolução Francesa, a primeira coisa que os Termidorianos fizeram, depois de derrubar os jacobinos, foi reinstituir a constituição que estabelecia o voto censitário, isto é, por renda. O argumento era de que os pobres não tinham condições nem tempo livre de se dedicar ao exame das questões políticas. Logo, não poderiam votar. O argumento do Aristóteles dito de outra maneira.

Retornando à atualidade, especificamente à realidade brasileira, nos deparamos com duas situações pertinentes: A votação do impeachment de Dilma Rousseff no congresso[2] e a aprovação da Lei Anti-Terrorismo[3] pelo executivo. Os dois acontecimentos são provocações gravíssimas ao regime democrático do país: De um lado o sequestro de 54 milhões de votos em todo o país, e do outro a criminalização dos movimentos sociais e a satanização das manifestações de massa da população.A resposta da primeira pergunta, portanto, é sim (atualizando a afirmação de José Paulo Netto* aos 5:20 minutos do vídeo). Temos nossa democracia POLÍTICA ameaçada, para já não considerá-la destruída!

E a construção de uma reação que toque no mais profundo senso-comum político terá de derrubar pilares que o sustentam. Esse é, portanto, um momento propício para lutar contra a aura de moralidade ("anti-corrupção, pela família, pelos valores tradicionais") que impregna o brasileiro e seus representantes no congresso, que nem ao menos sustentaram um motivo convincente para o impeachment ao discursarem na tribuna, e, por conta disso, viraram piada para o resto do ano:


Observa-se, então, que quando a moralidade é considerada regulador político o resultado sempre é a vitória do conservadorismo ou do reacionarismo. E afirmar isso não é "limpar a barra" de corrupto ou até mesmo ser contra investigações como a "Operação Lava-Jato", mas reconhecer que esse não deve ser o mote da ação política, pois é falso e no Brasil sempre serviu à direita.Para evidenciar isso cito dois exemplos marcantes do século XX: A tentativa de golpe de 1954, governo de Getúlio Vargas, presidente eleito pelo voto popular, e a cassação de Juscelino Kubitschek, que exercia a função de Senador pelo estado de Goiás, em 1964[4].

Ambos foram colocados na berlinda pela "corrupção".O primeiro caso, como já se sabe, levou ao suicídio de Getúlio e o segundo submeteu JK a todos os tipos de vexames pelo governo instaurado. E por fim, nos dois casos, não se provou um único ato irregular e corrupto.

Claro que reconheço, no entanto, que a luta contra o conservadorismo brasileiro seja uma pauta de longo-prazo, não atendendo prontamente as demandas imediatas da militância "pró-Democracia", que espera um milagre[5]. Porém, acredito que essa mesma militância deva encarar a questão criticamente, reconhecendo que nem Lula e nem Dilma trabalharam contra o envelhecido jogo político (munido de pautas obsoletas), e ao contrário, aliaram-se a ele com a desculpa da "correlação de forças".


"E o que o socialismo tem a ver com isso tudo?". Bom, é neste momento que as duas últimas perguntas se tornam úteis e necessárias. O que se observa no cenário político atual é a exaustão do programa democrático-popular e do partido que o levou a cabo, o PT. Partido que, juntamente com a CUT e outros aparelhos de organização em massa, transformaram-se em mantenedores da ordem burguesa, da democracia burguesa. A necessidade de construir uma alternativa a esse modelo se torna cada vez mais urgente. Mesmo que a contragosto de muitos governistas, que reduzem a militância a um imediatismo risível e partem do pressuposto de que uma alternativa fiel só será possível no reboque do governismo.


A inconsistência desse pressuposto reside no fato de que o PT, "defensor do socialismo", manteve a Agenda Neoliberal em dia e o PCdoB (Partido satélite), que reivindica o marxismo-leninismo, é o mesmo que votou a favor do ajuste fiscal que só precariza a vida do trabalhador. Somado a essas coisas está a perda de combatividade e apassivamento das massas, abatendo quaisquer condições de se formar no Brasil uma nova estratégia.


Apassivamento que é notado na fraca (ou até nula) oposição dos governistas à Lei Anti-Terrorismo (que ainda será tema de algum texto meu em outra oportunidade), que visa, antes de tudo, barrar a participação popular nas manifestações contrárias aos efeitos perversos da crise, e portanto, abre espaço para maiores restrições às liberdades democráticas. Mas somente um aperitivo dessa estultícia: A lei visa a identificar todo manifestante como um inimigo de Estado, prevendo até 30 anos de prisão para quem atentar contra a ordem e o patrimônio público, numa vergonhosa retomada dos princípios orientadores da famigerada Lei de Segurança Nacional dos tempos de ditadura, simbolicamente às vésperas dos 50 anos do golpe de 1964!



Embora estejamos presenciando uma incipiente reconstrução da esquerda socialista, estamos longe de fazer frente ao forte reacionarismo presente em todas as esferas de poder. Porém, chegar ao mesmo nível obviamente pedirá tarefas de curto, médio e longo prazo, que não darão espaço ao oportunismo que somente concilia com o capital.


Longe de dar-lhes uma "solução mágica", esse texto apenas incita a busca pela coerência na construção de um novo modelo e de uma nova estratégia para chegar a ele. Digo desde já que acredito na força do Poder Popular para isso, e que longe dele estamos fadados à derrota no campo político e social. Terei outras oportunidades para responder e justificar o título, mas pretendo utilizar desse diagnóstico como "pontapé inicial" de algumas análises políticas.


[1] O calendário ateniense tinha 10 meses.A cada mês, 50 atenienses entre os 500 sorteados eram escolhidos para administrar a cidade, cumprindo função executiva;

*José Paulo Netto, nascido em Minas Gerais no ano de 1947, é professor Emérito da UFRJ. Amplamente considerado uma figura central na recepção de György Lukács no Brasil, é coordenador da “Biblioteca Lukács”, da Boitempo. No Blog da Boitempo escreve mensalmente, às segundas, a coluna “Biblioteca do Zé Paulo: achados do pensamento crítico”, dedicada a garimpar preciosidades esquecidas da literatura anticapitalista.

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