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Coluna do Samuel

Por que ler "As Veias Abertas da América Latina"?


Eduardo Galeano, escritor e jornalista uruguaio, foi o responsável pela minha conversão à esquerda, e por uma paixão (quase instantânea), pelos estudos da América Latina. O livro, publicado pela primeira vez em 1971, por vezes apresenta alguns fatos já superados (se tratando, por exemplo, de Cuba). Entretanto, se olhado no geral, não me resta dúvidas: Ainda há muito o que se alcançar em nossa terra. Não nos daremos por satisfeitos!


(Ótima charge para simplificar a questão da pilhagem dos países colonizados, uma pena que o autor se esqueceu da América Latina)



Introdução: CENTO E VINTE MILHÕES DE CRIANÇAS NO CENTRO DA TORMENTA

"Na caminhada [do imperialismo e da dominação], até perdemos o direito de chamarmo-nos americanos ainda que os haitianos e os cubanos já aparecessem na História como povos novos, um século antes de os peregrinos do Mayflower se estabeleceram nas costas de Plymouth. Agora, a América é, para o mundo, nada mais do que os Estados Unidos: nós habitamos, no máximo, numa sub-América, numa América de segunda classe, de nebulosa identificação." [Pg. 13] "Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nativos. Na alquimia colonial e neo-colonial, o ouro se transforma em sucata e os alimentos se convertem em veneno." [Pg. 14] "A chuva que irriga os centros do poder imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema. Do mesmo modo, e simetricamente, o bem-estar de nossas classes dominantes - dominantes para dentro, dominadas de fora - é a maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga." [Pg. 14]


"A força do conjunto do sistema imperialista descansa na necessária desigualdade das partes que o formam, e esta desigualdade assume magnitudes cada vez mais dramáticas." [Pg. 14] "Josué de Castro (geógrafo brasileiro e autor do best-seller "Geografia da Fome") declara: Eu, que recebi um prêmio internacional da paz, penso que, infelizmente, não há outra solução que a violência para a América Latina." Cento e vinte milhões de crianças se agitam no centro dessa tormenta." [Pg. 15] "A história é um profeta com olhar voltado para trás: pelo que foi e contra o que foi, anuncia o que será." [Pg. 19] Primeira parte: A POBREZA DO HOMEM COMO RESULTADO DA RIQUEZA DA TERRA A distribuição de funções entre o Cavalo e o Cavaleiro; "Escreveu Karl Marx, no primeiro tomo de O Capital: "O descobrimento das jazidas de ouro e prata da América, a cruzada de extermínio, escravização e sepultamento nas minas da população aborígene, o começo da conquista e o saqueio das Índias Orientais a conversão do continente africano em local de caça de escravos negros: são todos feitos que assinalam os alvores da era de produção capitalista. Estes processos idílicos representam outros tantos fatores fundamentais no movimento da acumulação original". [Pg. 39]


O assassinato da terra no Nordeste do Brasil;

"O Nordeste brasileiro é, na atualidade, uma das regiões mais subdesenvolvidas do hemisfério ocidental. Gigantesco campo de concentração para trinta milhões de pessoas, padece hoje a herança da monocultura do açúcar. De suas terras nasceu o negócio mais lucrativo da economia agrícola colonial na América Latina." [Pg. 75] Graças ao sacrifício dos escravos no Caribe, nasceram a máquina de James Watt e os canhões de Washington; "Che Guevara dizia que o subdesenvolvimento é um anão de cabeça grande e pança inchada: suas pernas fracas e seus braços curtos não se harmonizam com o resto do corpo. Havana resplandecia, zumbiam os cadilaques em suas suntuárias avenidas, e no maior cabaré do mundo, ao ritmo de Lecuona, ondulavam as mais formosas vedetes; enquanto isso, nos campos cubanos apenas um em cada dez trabalhadores rurais tomava leite, apenas 4% consumia carne, e segundo o Conselho Nacional de Economia, três quintas partes dos trabalhadores rurais recebiam salários três ou quatro vezes inferiores ao custo de vida. Mas o açúcar não produziu apenas anões. Também produziu gigantes, ou pelo menos contribuiu intensamente para o crescimento deles. O açúcar do trópico latino-americano deu grande impulso à acumulação de capitais para o desenvolvimento industrial da Inglaterra, França, Holanda e também Estados Unidos, ao mesmo tempo em que mutilou a economia do nordeste do Brasil e das ilhas do Caribe, e selou a ruína histórica da África. O comércio triangular entre Europa, África e América teve por viga mestra o tráfico de escravos com destino às plantações de açúcar. “A história de um grão de açúcar é toda uma lição de economia política, de política e também de moral”, dizia Augusto Cochin." [Pg. 90]


O Latifúndio multiplica as bocas, mas não os pães; "Os latino-americanos que produzem os alimentos, em jornadas de sol a sol, normalmente sofrem de desnutrição: seus ganhos são miseráveis, e a renda que o campo gera é gasta nas cidades ou viaja para o exterior." [Pg. 140] "A ditadura militar que usurpou o poder no Brasil em 1964 em seguida tratou de anunciar sua reforma agrária. O Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, como observou Paulo Schilling, é um caso único no mundo: em vez de distribuir terra aos camponeses, dedica-se a expulsá-los, para restituir aos latifundiários as extensões espontaneamente invadidas ou expropriadas por governos anteriores. Em 1966 e 1967, antes que a censura da imprensa fosse aplicada com maior rigor, os jornais costumavam dar conta dos saques, dos incêndios e das perseguições que as tropas policiais levavam a cabo por ordem do atarefado instituto." [Pg. 141]


Segunda parte: O DESENVOLVIMENTO É UMA VIAGEM COM MAIS NÁUFRAGOS DO QUE NAVEGANTES


A Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai aniquilou a única experiência, com êxito, de desenvolvimento independente;

"O comercio inglês não dissimulava sua inquietação, não só porque aquele último foco de resistência nacional no coração do continente era invulnerável, mas também, e sobre tudo, pela força do exemplo que a experiência paraguaia irradiava perigosamente para os vizinhos. O país mais progressista da América Latina construía seu futuro sem inversões estrangeiras, sem empréstimo do banco inglês e sem as bênçãos do livre comércio." [Pg. 208]


"Do Paraguai derrotado não só desapareceu a população; também as tarifas aduaneiras, os fornos de fundição, os rios fechados ao livre-comércio, a independência econômica e vastas zonas de seu território." [Pg. 210]

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"O subdesenvolvimento é um anão de cabeça enorme e barriga inchada"


Galeano, com uma linguagem jornalística instigante (pode-se dizer até mesmo romântica), prestou e presta um enorme serviço à causa anti-imperialista. Após 7 anos da primeira edição do livro, o escritor lembra o atento leitor da época que "os comentários mais favoráveis não proviam de nenhum crítico literário de prestígio, mas das ditaduras militares que o elogiaram proibindo-o". Lembremo-nos então, nesse momento oportuno, de Blas de Otero: "Não deixam ver o que escrevo, porque escrevo o que vejo".


As Veias Abertas foi na contra-mão de muitos outros livros contemporâneos a ele. A linguagem hermética nem sempre é o preço inevitável da profundidade. Ela confirma, na verdade, que por muito tempo o conhecimento das informações contidas nesse livro eram privilégio das elites. Os capítulos, com títulos sempre provocativos, trazem à tona a necessidade do leitor se sentir tocado profundamente ao perceber que o passado sempre aparece convocado pelo presente, como memória viva do nosso tempo. Parte-se, então, do princípio que sugere a modificação da realidade por meio do conhecimento dela e, antes de tudo, de como chegamos à ela.

E essa 'modificação da realidade' não é pauta obsoleta coisa alguma, mas, ao contrário, uma pauta urgente. Acompanhamos não só no Brasil, mas em toda América Latina, o reforço do pensamento reacionário e a aplicação do neoliberalismo em sua mais detestável forma, como na Argentina de Maurício Macri. Além do tratamento repugnante aos Direitos Humanos na Colômbia de Juan Manuel Santos.

Protestos ocorridos no começo desse ano contra os decretos impostos por Macri;

Repressão policial na Colômbia: manifestação contra as péssimas condições do transporte público

E a legitimidade das manifestações contra esses regimes sanguinolentos não parte do "vitimismo esquerdista" ou até mesmo de "fatos infundados". Como citei a Colômbia, enumerarei algumas informações contestadoras do status-quo, que, ao gritar seletivamente contra a "violência de Chávez/Maduro" ou da "Ditadura Castrista", se torna cúmplice de diversos abusos. Nos últimos 20 anos: - três mil líderes sindicais e ativistas foram assassinados! - 4,5 milhões de camponeses foram expulsos de suas terras!

- 9 mil pessoas estão na condição de presas políticas por tempo indeterminado! [1]


Desde que começaram as negociações de paz (entre as Farc e governo): - 29 militantes da Marcha Patriótica foram assassinados e três "desaparecidos"

- Em 2013, 70 ativistas dos direitos humanos foram assassinados - segundo a Anistia Internacional.

- Ainda em 2013, mais de 55 mil colombianos foram obrigados a sair de suas casas (a maioria por causa de ameaças das Forças Armadas).

- A Federação Colombiana de Jornalistas publicou um relatório afirmando que 184 profissionais foram vítimas de violência em 2014. A Federação considera a situação dos jornalistas crítica no país. [2] A necessidade de construir um bloco anti-capitalista e anti-imperialista na América Latina não morreu no século XX. Nestas terras o que presenciamos não é a infância selvagem do capitalismo, mas sua severa decrepitude. Galeano tinha razão: O subdesenvolvimento não é uma etapa do desenvolvimento. É sua consequência. O furor revolucionário que se forjará daqui para frente (tendo em vista a situação econômica crítica dos países de economia dependente) não poderá repousar na conciliação de classes e/ou no reformismo. Antes de tudo, portanto, não cometer os erros passados. E, como é de se esperar, não cair no discurso pacifista monótono de sempre. Ninguém melhor que Bertolt Brecht* para exemplificar a questão:




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