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Coluna do Samuel

Cidinha

  • Bianca Manna
  • 15 de mai. de 2016
  • 2 min de leitura

( Foto de Alexis Pazoumian para o ensaio: "Favelado" )

Cidinha abriu os olhos.

Confusa, atordoada. Não sabia o que dizer. Mais um dia em que sua filha almoçaria bolacha de água e sal na escola. Seu estômago também roncava.

Cidinha dormiu.

Abriu os olhos preocupada. A conta de luz subiu. Seu salário caiu. Os boatos são que a fábrica que seu José trabalha vai fechar. Mais um em casa sem emprego.

Cidinha dormiu.

Abriu os olhos contente. Disseram no jornal que hoje era o dia em que iam arrumar o Brasil. Rojões, alegria. Achou que a copa tinha chegado mais cedo.

Cidinha dormiu.

Abriu os olhos com esperança, seu estômago ainda roncava e sua filha ainda sem merenda. Mas em alguns dias ela iria se formar.

Cidinha dormiu.

Abriu os olhos com tristeza, sua filha não passou na faculdade. Sem cota, sem bolsa, perdeu a vaga pra um boyzinho da cidade.

Cidinha dormiu.

Abriu os olhos muito aliviada, sua filha tinha arranjado um emprego perto de alguma quebrada. Não passava mais fome, não ficava na vontade. Sozinha ela conseguiu o que o governo não ajudava.

Cidinha dormiu.

Abriu os olhos com muitas lágrimas. Acabou de descobrir que sua filha fora estuprada. Pensou: "o que ela fazia essas horas na calçada?"

Cidinha dormiu.

Abriu os olhos dando risada. Hoje era o dia em que seu neto ia nascer. A criança era bastarda.

Cidinha dormiu.

Abriu os olhos em luto. Sua filhinha tinha ido embora. Parto violento, não perdoou os pecados da menina. Mas o que ela poderia fazer se haviam proibido o aborto e a pílula?

Cidinha dormiu.

Abriu os olhos, pensou em tudo isso.

Cidinha dormiu.

Não queria acordar enquanto fosse esse o Brasil.


 
 
 

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