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Coluna do Samuel

A Cultura Do Estupro

A violência contra a mulher no Brasil existe desde que essas terras eram denominadas Vera Cruz. Atualmente, apesar de tal fato constituir um crime gravíssimo, ele, devido ao seu profundo enraizamento em nossa sociedade, continua aumentando no Brasil.


Ao primeiro contato com o ambiente físico e social do seu exílio, novas influências, das mais variadas espécies, dele os portugueses se apoderariam e o transformariam num ente novo, nem igual nem diferente do que partira de Portugal. Dominavam dois sentimentos tirânicos: sensualismo e paixão do ouro. A história do Brasil é o desenvolvimento desordenado dessas obsessões subjugando o espírito e o corpo de suas vítimas. Para o erotismo exagerado contribuíam como cúmplices três fatores: o clima, a terra, a mulher indígena ou a escrava africana. Na terra virgem tudo incitava ao culto do vício sexual. Desses excessos de vida sensual ficaram traços indeléveis no carácter brasileiro.


A opressão dos relacionamentos entre indígenas e brancos carregava consigo, sob a cruz e a espada da inquisição,uma violência mortal disfarçada de racionalidade. Enrique Dussel (em seu livro “1492”) também descreve o que ele chama de colonização do ego fálico: “o conquistador mata o índio violentamente ou o reduz à escravidão, e estupra a indígena ainda na presença do índio, em seguida se ‘amanceba’ com elas”. A cada estupro, as índias tinham a obrigação de negar sua religiosidade em nome de um Deus estrangeiro. A cruz e a espada davam aos conquistadores a legitimação do estupro. A cruz culpabilizava a indígena pelo estupro. Primeiramente, por estarem nuas, depois, por não terem acastração da moralidade cristã em sua cultura. Tal pensamento persiste na mentalidade brasileira até hoje, na insistência cultural machista-cristã de responsabilizar a vítima do estupro como provocadora do crime cometido contra ela; seja pelo modo como se vestem ou pela hora e lugar que transitam sozinhas. A espada justifica a violência “civilizatoria” como enfrentamento “necessário” contra a barbárie primitiva (nudez e a ausência de trabalho) dos indígenas.


“Mas... Olha a roupa dela... Tava pedindo, né?”


As indígenas não foram as únicas estupradas em nome da colonização/civilização. As mulheres africanas também foram vítimas da mesma prática. Estuprada em sua terra natal pelos colonizadores, a mulher africana era trazida para cá em um processo continuo de violação. Se na história humana os europeus foram hábeis em coisificar pessoas como mercadorias, é na figura da mulher africana que a situação alça seus voos mais altos de crueldade. Trazidas à força para a América, eram desnudadas e colocadas em mercados para serem vendidas e marcadas com fogo, após terem seus corpos minuciosamente apalpados por diversos possíveis compradores. Como descreve, por exemplo, o Padre Fernando de Oliveira em seu livro “Arte da guerra do mar” (1555), ou a coletânea de textos de Ana Barradas, “Ministros da noite” (1995). Após serem apalpadas e compradas eram levadas para as fazendas e logo submetidas ao estupro continuado de seus senhores. São inúmeros os relatos, que vão até décadas depois da abolição da escravatura no brasil, feitos pelas autoridades cristãs e militares insistindo em descrever as mulheres africanas como lascivas e instigadoras do estupro para justificar as atrocidades de seus congregados. primeiro como um fator étnico-cultural (“a dança em seus movimentos corporais e agilidades nos pés cuja motivação é a satisfação depravada de apetites libidinosos”. – cavazzi, 1687) depois como escrava (“nem era preciso violência para estuprar as cativas, tal era o medo que nos tinham”. – soldado português josé da costa, 1961 em angola). 


É preciso que nós, filhos e filhas bastardas, revisemos a falácia de que o que passou, passou. Ainda vivemos sob a cruz e a espada. É hora de dar um basta no ficar justificando, ou até mesmo positivando, a opção de estar do lado do estuprador. É hora de dar um fim a esse permanente holocausto erótico que persiste até os dias de hoje. É hora assumir que vivemos em uma cultura do estupro para, pouco a pouco, acabarmos com ela.



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