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Coluna do Samuel

Totalitarismo: Esse termo realmente faz sentido?


Charles Chaplin em O Grande Ditador (1940)

Uma categoria recorrente nos debates sobre o século XX é o de totalitarismo. Ganhou maior relevância após a publicação, em 1951, do livro de Hannah Arendt - "As Origens do Totalitarismo" - mesmo já servindo como tema para debates pelo menos 10 anos antes. Ocorre que, se examinada mais rigorosamente, notaremos que seu papel não é de auxílio à esquerda, muito menos àquela revolucionária. Pelo contrário, quando utilizada como "carta trunfo" por alguns, coloca lado à lado nazismo e socialismo - "irmãos gêmeos" - falsificando vergonhosamente a história.

Acho prudente, então, antes de tudo, buscar a perspectiva arendtiana. Sua ideia de dominação é definida como “a dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida” (Arendt, 1989, p. 375). Hannah ainda distingui o regime totalitário da tirania: "A distinção decisiva entre o domínio totalitário, baseado no terror, e as tiranias e ditaduras, impostas pela violência, é que o primeiro volta-se não apenas contra os seus inimigos mas também contra os amigos e correligionários, pois teme todo o poder, até mesmo o poder dos amigos. O clímax do terror é alcançado quando o Estado policial começa a devorar os seus próprios filhos, quando o carrasco de ontem torna-se a vítima de hoje. É este o momento quando o poder desaparece inteiramente" (Arendt, 1985, p. 30). Margaret Canovan buscou dar precisão à essa diferença. Segundo ela, a essência da tirania é a ausência de lei e o poder arbitrário. Já no totalitarismo, o exercício do poder não é arbitrário e não pode ser pensado em termos de ausência de leis, nem em termos de interesses pessoais do tirano. Nele, o terror é a essência do sistema, e não um princípio ancilar da ação.[1]


Hannah Arendt


É necessário ainda, antes de entrarmos no campo da aplicação do conceito à diferentes conjunturas, tratarmos de como alguns autores que abrem caminho à pós-modernidade identificam tragicamente a categoria teórico-ontológica da totalidade com os fenômenos políticos de totalitarismo. Para Marx, a sociedade burguesa é uma totalidade concreta, já que toda realidade sócio-histórica constitui sempre uma totalidade. Retomando Lukács, essa categoria pode ser apreendida como um "complexo de complexos" e não um "todo" constituído por "partes" funcionalmente integradas[2], como deduzem os politólogos individualistas e a própria Arendt, que, além disso, afirma que o totalitarismo comunista se caracteriza pelo sacrifício da moral sobre o altar da filosofia da história e de suas leis “necessárias” - guiadas por uma inexorabilidade. No comunismo que Marx defendia o Estado é diluído, assim como as nações, as religiões, as classes sociais, todos elementos constitutivos de uma identidade que ultrapassa o círculo meramente individual: não há sentido, então, tratar categorias com base em um organicismo e fazer surgir de um presumido determinismo marxiano (pois para Marx as leis históricas são tendências) o aniquilamento do indivíduo no âmbito do sistema totalitário.



Ainda sobre a afirmação de Arendt, "o totalitarismo comunista se caracteriza pelo sacrifício da moral sobre o altar da filosofia da história", é coerente corrigi-la também no que se entende por moral: nota-se por meio dessa frase o idealismo arendtiano. Acontece que não há uma moral abstrata, apreensível pela razão. Isto quer dizer que, pensar em uma coisa dada e imutável, não faz sentido algum. O que existe, realmente, é uma moral concreta, criada pelas sociedades. A própria moral da autora é a moral da sociedade em que ela vive. Pode-se encaixar aqui também a leitura de Sartre: "A existência precede a essência". A moral, assim como outras criações humanas, não precedem a existência do ser humano, não existem independentemente dessa existência.


A partir do que foi exposto acima, podemos agora compreender criticamente as aplicações da autora. E para isso suponho que seja inteligente trazer à tona o estudo de uma autora inglesa, Frances Stonor Saunders, que em seu livro "Quem pagou a conta?" expôs como a CIA patrocinou publicações de diversos autores através de inúmeras fachadas. Com esta política, a CIA foi capaz de angariar o apoio de alguns dos maiores expoentes do mundo ocidental, a ponto de muitos passarem a fazer parte de sua folha de pagamentos. Entre eles estão: Fernando Henrique Cardoso, George Orwell e a autora de Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt.[3]


Assim fica fácil interpretar a tarefa da categoria de totalitarismo: atender às expectativas da Guerra Fria cultural e colocar no mesmo "balaio" stalinismo e nazismo, e ainda possibilitar o igualar de toda e qualquer experiência socialista àquelas experiênciais inauguradas por Benito Mussolini e Adolf Hitler.



Para tratarmos da Rússia soviética, mais precisamente nos anos 30, precisaremos ficar por dentro de seu contexto objetivo. Estudando-o observaremos que não se trata de um sociedade caracterizada pela uniformidade, pela permanência da paz e das relações amigáveis com o exterior liberal. No entanto, uma análise das relações de produção da época pode nos iluminar a interpretação: no processo de modernização promovido por Stálin, longe de ser decidida do alto, a localização de determinada obra é resolvida após um complexo processo decisório - muitas vezes com debates acalorados e motivantes: "ao contrário da estreita centralização da era czarista, a retórica anticolonialista da União Soviética conferia aos lobbies regionais um poder impensável durante o antigo regime". Ficava ainda evidente a força de determinadas regiões mais precárias que pressionavam o regime a manter suas promessas.[4]

Trabalhadoras soviéticas no período da II Guerra Mundial


Mas não acaba por aí. Se analisarmos o funcionamento interno das fábricas ou estaleiros soviéticos, não teremos a impressão de estarmos lidando com um "local de trabalho totalitário". Pelo contrário. No conjunto, temos uma espécie de embate entre 3 participantes: os dirigentes do partido e sindicatos, os operários e os técnicos. Todos os três mantinham interesses, por vezes, diferentes. Os primeiros estavam empenhados em maneiras para se aumentar a produtividade; os segundos estavam preocupados com a elevação dos níveis salariais; e os terceiros ficavam no intermédio desses dois. Os últimos, tanto aqueles que tinham se formado no antigo regime como os que se formavam no novo, demonstravam colaboração leal ao regime soviético e, no entanto, enfrentavam aquele novo estrato social, "os trabalhadores de vanguarda". Esses últimos "são chamados a julgar os seus chefes"; e assim compreende-se muito bem porquê os "engenheiros resistem duramente" ao "controle operário".[5]


É, então, complicado demais entender a "dominação permanente de todos os indivíduos em toda e qualquer esfera da vida” sem levar em conta esses detalhes, pois o "totalitarismo" era bem mais desenvolvido na fábrica da Rússia czarista, onde vigorava o seguinte princípio: "O dono do estabelecimento industrial é soberano e legislador absoluto que não conhece vínculos legais"; este também poderia recorrer aos ensinamentos do chicote, em caso de infrações.[6]


O aspecto "totalitário" fica mais notável, de fato, se tomarmos como exemplo os Estados Unidos, onde detidos (em sua maioria afroamericanos) eram alugados a empresas privadas. Essas podiam usufruir de métodos de tortura, açoites, humilhações etc.[7]



Retirar os lugares de produção das análises, abstraí-los de maneira ingênua, faz com que a maioria dos estudos se tornem superficiais e, em última análise, enviesados.


Prosseguindo com a caracterização de Arendt, vemos enunciada claramente a "Dialética de Saturno": "[...]o domínio totalitário[...]volta-se não apenas contra os seus inimigos mas também contra os amigos e correligionários, pois teme todo o poder, até mesmo o poder dos amigos." A dialética na qual "Saturno devora os seus filhos" não é, porém, exclusividade da Revolução de Outubro, ela vale também para a Revolução Inglesa e para a estadunidense, séculos XVII e XVIII, respectivamente. Ocorre que, a 'unidade coral' que se orienta para a derrubada de um regime antigo e agora abominado pela maior parte da população inevitavelmente se racha ou dispersa no momento em que se trata de decidir sobre a nova ordem a estabelecer, como bem justifica o historiador Domenico Losurdo.[8] É por conta disso que, por exemplo, Kamenev e Zinoviev põem os mencheviques a par dos planos de Lênin, e então são considerados traidores da revolução socialista pela maioria dos bolcheviques.



Outra característica que teria levado ao totalitarismo staliniano seria, para Arendt, a obsessão do "inimigo objetivo": a procura incessante de novos alvos para a máquina repressiva - descendentes das velhas classes dominantes, kulaks, traidores de dentro do partido, alemães do "Volga", etc. Outro esquema inútil para dar exclusividade ao sistema iniciado em 1917. Para notar a inépcia do mesmo, basta aplicá-lo sem dificuldade à história dos EUA. A partir da intervenção na I Guerra Mundial, os alemães (e americanos de origem alemã) se tornam inimigos por excelência; mesmo considerada a aliança feita durante a II Guerra Mundial com os russos, os próximos alvos de perseguições serão os comunistas e aqueles que simpatizam com o lado leste do globo; para o combate anti-comunista no Afeganistão se treinam os Freedom Fighters (entre eles o próprio Bin Laden); após a queda do "Império do Mal", nos anos 90, esses últimos aliados do Oriente Médio se tornarão a encarnação do ódio contra o "american way of life", e assim se inicia a luta contra o "terrorismo".


"Guerreiro anti-soviético coloca seu exército no caminho para a paz"


Antes de concluir, talvez seja interessante voltar nossos olhos ao estudo do professor José Quartim de Moraes, da Unicamp. Colocando-se de maneira implacável, demonstra que a quantidade de liberais que aderiram ao fascismo foi incomparavelmente maior do que a de comunistas. No Canadá, por exemplo, membros da SS ou Esquadrões da Morte encontraram refúgio, como recentemente comprovaram caçadores de nazistas. Confirmou-se também que no pós-guerra bastava mostrar tatuagem da SS para ser imediatamente acolhido pelas autoridades canadenses. Ainda hoje, um número considerado de veteranos nazistas recebem pensões do governo alemão (que é, aliás, muito cristão e liberal). A Suíça, celebrado modelo de prosperidade burguesa e do mais respeitado liberalismo, também foi responsável por "abraçar" a causa nazista. Como já demonstrado por documentos, mais de dois terços (76%) do ouro nazista extorquido das vítimas do extermínio havia sido transferido ao país. Até mesmo os dentes de ouro arrancados antes do assassínio nas câmaras de gás.[9]


Poderia citar, simplesmente, os casos de extermínio de negros no sul dos Estados Unidos, a conhecida "white supremacy", os campos de concentração para os cidadãos estadunidenses de origem japonesa logo após Pearl Harbor, os patrocínios às ditaduras empresariais-militares na América Latina, para provar que esse fenômeno político é recorrente ao longo da história da dominação burguesa: a supressão da forma política liberal para preservar o essencial do conteúdo econômico capitalista.


Negros enforcados no sul dos EUA Bela democracia, não?

Concluo reiterando a necessidade de uma real transformação da sociedade. Insistir nesse horizonte não é mera utopia. A barbárie não ficou restrita às experiências passadas, ficando a cargo dos estudiosos de história apenas uma interpretação ou uma revisão daquilo que já foi enunciado. Quem dera, aliás, que isso fosse verdade. As experiências do século passado tiveram, obviamente, equívocos e encontraram inúmeras adversidades para suas construções. Contudo, não adianta realizar análises precipitadas ou superficiais para realizar uma mea culpa, ou até mesmo jogar na lata do lixo alguns processos que evidenciaram a possibilidade de mudança. A operação de autocrítica também compreende aceitar as nuances que uma revolução pode trazer, e aprender, sobretudo, com elas.


[4] PAYNE, Matthew J. - Stalin's Railroad. Turksib and the building of Socialism (2001) [5] Idem.

[6] FIGES, Orlando - A People's Tragedy (2000) [7] BLACKMON, Douglas A. - Slavery by Another Name (2008) [8] LOSURDO, Domenico - Stalin, História Crítica de uma lenda negra (2010) [9] http://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/artigo53critica8parte3quartim.pdf

[10] ARENDT, Hannah - Origens do Totalitarismo (1985) & (1989) [11] CANOVAN, Margaret - The contradictions of Hanna Arendt’s political thought (1978)

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