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Coluna do Samuel

Gramsci, o impeachment e a estapafúrdica mídia brasileira


Em 1922, o revolucionário italiano Antônio Gramsci e todo o conjunto comunista italiano enfrentavam um duro ataque. Era simplesmente o ano vitorioso da camarilha fascista comandada por Benito Mussolini, então nomeado como primeiro-ministro. Nos dois primeiros anos de seu mandato, no entanto, Mussolini não se sobrepôs ao poder do Rei Vítor Emanuel III, desagradando a muitos dos membros do Partido Nacional Fascista (PNF). Foi em 1924, nas eleições parlamentares, após uma ampla reforma eleitoral que privilegiava os interesses do PNF, e em meio a espancamentos e fraudes, os fascistas e seus aliados conseguiram 2/3 das cadeiras do Parlamento. Gramsci, no entanto, não abaixou a cabeça ao ocorrido, e tratou de encarar a situação honradamente. Ferrenho opositor de Mussolini, ficou conhecido por suas investidas rigorosas contra o ditador no Parlamento. Qual, então, seria a leitura do revolucionário frente à derrubada de Dilma no Brasil? Como Gramsci interpretaria notícias vinculadas nos jornais mais famosos do país? Para isso, nada melhor do que nos debruçarmos sobre o próprio.


O primeiro texto selecionado por mim é datado de 1916, seu título é "Os Jornais e os Operários" [1]. Logo no começo Gramsci já sintetiza, de maneira simples e direta, a função de um jornal: "A mercadoria é aquela folha de quatro ou seis páginas que todas as manhãs ou todas as tardes vai injetar no espírito do leitor os modos de sentir e de julgar os fatos da atualidade política que mais convém aos produtores e vendedores de papel impresso. Estamos dispostos a discorrer, com os operários especialmente, sobre a importância e a gravidade daquele ato aparentemente tão inocente que consiste em escolher o jornal que se pretende assinar?". O embate que Gramsci propõe é de extrema importância, afinal, percebe-se que o jornal pode ser de fato um instrumento de luta, porém, aquele de caráter burguês (e aqui podemos inserir a grande mídia) não é movido por ideias e interesses que estão em consonância com a classe dos trabalhadores: "Tudo o que se publica é constantemente influenciado por uma ideia: servir a classe dominante, o que se traduz sem dúvida num fato: combater a classe trabalhadora."


Ainda no mesmo parágrafo, Gramsci foi amplamente atual e conciso: "Rebenta uma greve? Para o jornal burguês os operários nunca têm razão. Há manifestação? Os manifestantes, apenas porque são operários, são sempre tumultuosos, facciosos, malfeitores." Se transportarmos esse trecho para o ano de 2016, mais especificamente para o dia 2 de setembro, analisaremos o seguinte editorial, publicado em um jornal brasileiro de grande circulação:


À primeira vista, diríamos que o texto faz referência aos grupelhos de extrema-direita que assombram, por exemplo, o ABC Paulista. No entanto, o percurso do texto é completamente diferente. Os alvos da crítica, ou os "fascistas" que condenam a democracia, são aqueles que saíram às ruas para protestar contra um ilegítimo presidente que, após prometer punir quem o chamar de "golpista" [2], iniciará um pacote perverso de privatizações que inclui o pré-sal [3], provando o caráter autoritário, desonesto e anti-popular de seu governo.


Indo para o final do texto encontraremos um das bizarrices próprias da duvidosa intelectualidade midiática brasileira. Pareia-se o nazismo (ou os processos que culminaram no III Reich) aos movimentos que se revoltam por terem seus votos surrupiados. É, simplesmente, a aplicação da famosa "Lei de Godwin", ou "Reductio ad Hitlerum", que consiste uma falácia argumentativa. Ao passo que um discurso se vê perdido e/ou derrotado, a probabilidade de uma comparação grotesca com o regime hitleriano acontecer aumenta.


É coerente nesse momento, então, trazermos à tona uma das principais expressões elaboradas por Gramsci. A imprensa, como um dos principais instrumentos de formação da hegemonia da classe dominante, garantem a dominação, não somente pela força, mas pela capacidade de convencer (recorrendo, como visto acima, de qualquer artifício), inclusive a classe trabalhadora, de que os interesses particulares dessa burguesia são os interesses de toda a sociedade.


Porém, a combatividade de Gramsci o impediria de manter qualquer ilusão na democracia formal. E o impeachment de Dilma Rousseff abre espaço para esse debate. Em outro texto [4], publicado no jornal L’Ordine Nuovo, Gramsci critica duramente a esquerda que se permite enganar com as garantias legais do estado burguês: "Até onde vão os limites da legalidade? Em que momento deixam de ser respeitados? É certamente difícil fixar qualquer limite, dado o caráter bastante elástico que assume o conceito de legalidade. Para qualquer governo, toda ação que se manifesta no campo da oposição contra ele supera os limites da legalidade [...] Quando uma ação busca atingir de algum modo a propriedade privada e os lucros que dela derivam, tal ação se torna imediatamente ilegal."


Esse trecho contempla, e muito, nosso atual cenário. Para Gramsci, a legalidade do Estado Liberal possui duas faces, uma interna e outra externa. Os 54 milhões de votos recebidos por Dilma Rousseff só se traduzem na face exterior da democracia liberal. Ocorre que, a face interna, ou o lado substancial dessa democracia, se traduz no impedimento da ex-presidenta, que não estava agradando o suficiente a classe dominante. O papel de gerente dos interesses dessa classe, no momento atual, é Michel Temer, que porá rapidamente em pauta a ofensiva contra a classe trabalhadora, aumentando a idade da aposentadoria, flexibilizando as leis trabalhistas e etc.


Alegar, no entanto, que o governo petista tenha seguido seu programa histórico é um tremendo equívoco. Os últimos momentos do governo reforçaram ainda mais esse ponto. Kátia Abreu, a Ministra da Agricultura de Dilma Rousseff (ou "Rainha da Motosserra"), em seu discurso no Senado, deu a última cartada. Conclamar o conjunto dos trabalhadores para a defesa do governo e de um projeto, como na Venezuela de Chávez, nunca foi a intenção do PT. O grupo convocado para apoiar a continuidade de Dilma não foi o camponês ou o quilombola, mas sim o conjunto do agronegócio. E essa opção política se traduz, como é de se esperar, em uma fórmula fadada ao esgotamento, como confirmado pelo próprio impedimento.



A terceira e última publicação que recorro para finalizar esse texto, e para retomar o trágico editorial citado no início, é de 1919 [5], também publicado no jornal L'Ordine Nuovo. Ao contrário da maioria dos observadores e analistas, que, em 2013 diagnosticaram nos protestos de massa e levantes populacionais a "ausência de foco nas reivindicações", Gramsci acusaria outro aspecto: "Como dominar as imensas forças sociais que a guerra desencadeou? Como discipliná-las e dar-lhes uma forma política que contenha em si a virtude de desenvolver-se normalmente, de integrar-se continuamente, até tornar-se a ossatura do Estado socialista na qual se encarnará a ditadura do proletariado?". Fica claro, portanto, que o que essas reivindicações não tiveram foi uma direção política adequada, não conseguindo, a partir daí, um saldo organizativo apreciável.



E a construção de uma mobilização realmente combativa se dará "somente através de um trabalho comum e sólido de esclarecimento, de persuasão e de educação recíproca". O campo político da esquerda está atordoado e pede uma leitura mais completa do que ocorreu e dos porquês. Sem esse tipo de leitura não conseguiremos avançar. Os italianos passaram por momentos ainda piores, e a história nos deixou um tesouro precioso: poder aprender com Gramsci. Sinceramente, um enorme privilégio.







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